O Hino da Paz



Vivia numa pequena cidade do interior e era,segundo se dizia,o homem mais rico do país e um dos mais ricos do mundo.Dedicava-se,a tempo inteiro,ao tráfico de armas.Ou seja:participava,ainda que indirectamente,na morte de milhões de seres humanos.Tinha,pois,uma das mais aberrantes profissões que alguém pode exercer.Amiúde,chegavam às imponentes instalações que possuía nos arredores da cidade enormes camiões,transportando toneladas de pistolas,de espingardas,de metralhadoras e de toda a sorte de artefactos bélicos.Mas,estranhamente,ninguém os via sair a caminho dos muitos campos de batalha que,infelizmente,continuam a existir em vários pontos do planeta.Certamente procederia a essa actividade a coberto da noite,por improváveis remorsos ou por mera estratégia,para não chocar a opinião pública.Espicaçados pela curiosidade,alguns cidadãos decidiram montar guarda nas imediações da sinistra empresa,mantendo-se várias noites em vigília.Contudo,não conseguiram detectar o mais pequeno movimento.Até que,passado algum tempo -e para espanto geral-,o Senhor da Guerra(como era conhecido) abriu de par em par as pesadas portas blindadas,convidando toda a população a franqueá-las.E o certo é que ninguém ficou em casa.Todos se encaminharam para o sinistro armazém num frenesim sem nome.Transposta a entrada,escutou-se,quase em uníssono,uma exclamação de assombro.Porque,em vez das armas que julgavam ir ver,deram de caras com um número quase infinito de instrumentos musicais!Tubas,trombones,clarinetes,harpas,guitarras,violinos,violoncelos,e por aí adiante!Afinal,aquele homem fora comprando,ao longo dos anos,toda a sorte de armas,das mais simples às mais sofisticadas -mas todas elas mortíferas-,para as transformar em magníficos instrumentos musicais!"Agora,meus amigos,pegai no instrumento que mais vos agradar e tocai",pediu-lhes o falso traficante.Assim fizeram e,pouco depois,uma melodia fantástica se elevou daquele lugar,ecoando por toda a parte,até aos confins do Universo.Interpretavam-na milhares de pessoas de todas as idades e condições sociais.E tinha um nome:Hino da Paz.

O Muro

Era um homem de olhar taciturno-com a sombra daquela dolorosa amargura que descobrimos no olhar dos cães abandonados.E vestia andrajos.Cabelo hirsuto,barba crescida,pele curtida pelo implacável látego do tempo.Em suma:um verdadeiro farrapo humano.O lugar onde se encontrava dir-se-ia o cenário de um pesadelo.Limitado,de um lado,por uma montanha escarpada;e,do outro,por um intransponível muro de betão.Até o sol que iluminava aquele antro tinha um brilho baço,doentio,e os seus raios pareciam apodrecer quando espelhados nos inúmeros charcos de água estagnada.O infeliz mantinha-se invariavelmente em silêncio,porque já não tinha forças,sequer,para lamentar a sua desdita.Ali estava,sentado no chão imundo,como se fizesse parte,desde sempre,daquela desolada paisagem.Até que,numa certa manhã,pousou,a poucos metros de si,um corvo.Pelo aspecto,percebia-se que era uma ave bastante velha-no mínimo,centenária;e pelo desassombro com que se aproximou do homem,que não temia a reacção daquela criatura vestida de tristeza.Além disso falava!,como ficou provado no instante seguinte:"Que se passa contigo,bom homem?"Este limitou-se a encolher os ombros,recolhendo-se,de novo,ao seu ensimesmamento.Mas o corvo não desistiu de provocar o diálogo:"Vejo-te muito abatido.Não quererás,acaso,desfiar o rosário das tuas mágoas?Repara:sou um corvo.Se fosse um homem como tu,compreenderia que não quisesses abrir-te comigo,pois vós,humanos,gostais muito de aproveitar a fraqueza dos vossos irmãos para os vexar ainda mais ou para os usar em vosso proveito".Então,soltando um fundo suspiro,o desventurado gemeu:"Tens razão no que acabas de dizer.Fui manipulado pelos outros e pelo meu próprio ego.E quando mais precisava de apoio,lançado para esta lixeira como coisa imprestável".E continuou:"Já fui rico.Muito rico!Tive tudo o que um homem pode desejar-tudo!Mas senti-me sempre infeliz.Por outro lado,nunca pensei que pudesse vir a perder,um a um,todos os bens que amealhei com tanta determinação.Agora,vivo no único lugar que realmente existe:este monturo fétido".O corvo soltou um crocito de desaprovação e,fitando de lado o seu interlocutor,disse-lhe:"Estás completamente enganado,meu amigo.Isto que julgas ser a verdadeira e única realidade não passa de uma miragem gerada pela tua atormentada mente".O homem ia refutar as palavras do corvo,mas este não lhe deu tempo.E bicou energicamente o muro.Perante a estupefacção do infeliz,o que parecia ser uma superfície dura e indestrutível rasgou-se como uma simples folha de papel,pondo a descoberto o que existia do outro lado."Que vejo eu?!",exclamou o homem,esbugalhando os olhos de espanto.E chorando,emocionado(e,aqui,tenho de interromper a narrativa para vos dizer que as lágrimas são rios de água viva que brotam das nascentes dos olhos e desaguam no coração),ampliou o rasgão feito pelo corvo e transpôs o falso muro radiante de felicidade.Belas construções do mais puro cristal erguiam-se para os céus,através da vegetação luxuriante.Jardins magníficos,de flores perfumadas e multicoloridas estendiam-se quase até ao infinito.Aves exóticas enchiam a atmosfera com os seus trinados.E as pessoas que por ali passavam sorriam-lhe amorosamente,enchendo-lhe a alma de júbilo."Estás na Cidade do Ser",revelou-lhe o corvo.Mas o nosso homem já não o escutou.Corria,saltava,cantava,dançava,abraçava toda a gente,e assim desapareceu por entre a multidão.Uma nota final:Se conheces alguém que viva,como o homem desta história,limitado por um "muro",ajuda-o a rasgá-lo e a descobrir,assim,a verdadeira realidade que se esconde dentro de cada um de nós.Que assim seja.