A Canção do Lobo Solitário

Numa aprazível tarde de Outono,quando o pincel da Mãe Natureza coloria de vermelho e ouro as copas das árvores da grande floresta,um lobo solitário surgiu inesperadamente na clareira onde,no fim de cada tarde,se reuniam todos os animais amantes do "bel canto",para escutarem,enlevados,os trinados do famoso Quarteto de Melros.Quando o viram,os coelhos,os texugos,as gazelas e outros bichos de pequeno porte trataram de se refugiar rapidamente nas suas tocas,não fosse o recém-chegado devorá-los.Só ficou para o receber um frágil rato que,por sofrer de artrite,estava impedido de acelerar o passo."Não me faças mal",implorou ele ao lobo.Este,fitou-o com um olhar grave,de quem carregava sobre o lombo um sem-fim de preocupações,e disse:"Não temas.A verdade é que não tenho o mínimo apetite.Nós,os lobos,só caçamos quando temos fome.Não o fazemos por mero capricho,como os humanos".Mais descansado,o rato arriscou:"Que fazes por aqui,longe do teu território e da alcateia?"A expressão do lobo tornou-se ainda mais sombria:"Já não tenho território nem alcateia.Os seus membros-incluíndo a minha fêmea e os nossos filhotes-foram abatidos pelas balas assassinas dos homens e pelas suas traiçoeiras armadilhas.Restei,apenas,eu.Sei que do outro lado desta floresta há um lugar pacífico,de difícil acesso-uma montanha que as nuvens sempre acariciam-, onde talvez possa viver em paz até ao fim dos meus dias".O rato limpou uma lágrima emocionada e falou assim para o lobo:"Apesar do temor que nos provocas,acredita que temos por ti a maior consideração".Mas o lobo já não pôde ouvir essas palavras.De olhos postos na imponente montanha,encaminhou-se para ela levado por uma grande esperança,tal como se avançasse para o próprio Éden,que é um lugar onde,como sabeis,a maldade humana não penetra.E,enquanto corria,veio-lhe à lembrança a canção que seu pai-o lobo Alfa de uma inesquecível alcateia-uivava nas noites em que a Lua cobria com o seu manto de prata os cumes da montanha onde viviam:"Um dia partirás/nos braços do irmão vento/e,de estrela em estrela,/chegarás à intemporal planície,/onde te aguarda,amoroso,o Grande Espírito".

A CORÇAZINHA QUE EU QUIS

A propósito do sonho de que vos falei anteriormente ou,para ser mais exacto,da minha amiguinha Chispa,vou revelar-vos o seguinte:Quando nós queremos com muito empenho e do fundo do coração que um certo desejo que acalentamos se transforme em realidade,isso acaba sempre por acontecer,ainda que,por vezes,não nos apercebamos do facto.Parece magia,não é verdade?Mas é que a realidade-ao contrário do que muita gente pensa-é mágica!Só não o é quando nós,por causa das nossas atitudes negativas,a transformamos numa coisa desinteressante.Ora acontece que a Chispa foi,exactamente,a concretização de um dos meus mais ardentes desejos.Eu explico.No já longínquo ano de 1952-tinha,então,cinco anos de idade-,fui ao cinema com a minha família,para assistir a um filme norte-americano intitulado The Yearling(na versão portuguesa "Despertar").O filme em questão,rodado em 1946,inspirava-se no romance homónimo de Marjorie Kinnan Rawlings,no qual a autora contava a história da família Baxter-gente voltada,essencialmente,para a agricultura de subsistência.Mas o que sobressaía nela era o amor que Jody,filho dos Baxter,dedicava a Flag-uma corçazinha que ele próprio adoptara após Mr.Baxter ter abatido sua mãe,durante uma caçada.Confesso que o final de "Despertar" me magoou,por ser um pouco triste.Mas o que verdadeiramente interessa é que o seu lado feliz me marcou de tal maneira que,a partir daí,só pensei em ter uma corça igual à de Jody.Tratava-se de um desejo cuja concretização parecia ser,à partida,de todo impossível.Mas...sê-lo-ia mesmo?No lugar onde eu vivia não havia corças;nem teria espaço suficiente para ter uma em condições aceitáveis.As corças são animais que devem viver em total liberdade e,para tal,eu teria de residir no meio de uma grande floresta,tal como os Baxter,o que não era o caso.Um dia,porém,uma tia minha enviou-me da sua Galiza natal uma adorável cadelinha-a Chispa-,cuja cabeça-redonda,com grandes orelhas pontiagudas e um olhar doce como o mel-se parecia muito com a das corças!E foi desse modo que o meu desejo se realizou e pude,inclusivamente,imaginar que era o Jody(apesar de o meu cabelo ser da cor das penas dos corvos)e que a Chispa era Flag-a sua amiga corça!Ah!Nem imaginam as aventuras que ambos tivemos e como nos divertimos!...